24 agosto 2025

Autismo (maternidade)


Ser mãe e ser autista é viver um paradoxo constante: a vida que pulsa em cada filho é uma bênção imensa, um presente que me lembra todos os dias o quanto a maternidade é meu maior antídoto. Mas, ao mesmo tempo, cada detalhe dessa vida familiar vem carregado de desafios que nem sempre cabem nos olhos dos outros.

Tenho quatro filhos, e cada um é um universo. Eles enchem a casa de risadas, perguntas, choros, brincadeiras, cantorias — e tudo isso é lindo. Mas também é barulhento. E o barulho, para mim, não é apenas barulho: é uma enxurrada de sons que meu cérebro não consegue filtrar, como se cada grito, cada brinquedo caindo, cada porta batendo fosse um alarme. Amo a vida que preenche a casa, mas o excesso sonoro às vezes me esgota antes mesmo de eu perceber.

O cheiro também tem seu peso. Ser mãe significa lidar com fraldas, vômitos, comida esquecida que estragou… e enquanto para outros isso é apenas um detalhe, para mim é quase insuportável. Não porque não ame cuidar, mas porque o meu corpo reage de forma amplificada a esses estímulos. Ainda assim, eu respiro fundo, lavo, limpo, abraço — porque o amor fala mais alto que o desconforto.

O toque é outro campo delicado. Beijos e abraços dos meus filhos são tesouros, mas às vezes o excesso de contato físico me sobrecarrega. Não é falta de amor, é só a forma como meu sistema nervoso funciona. Eu preciso aprender a dosar: acolher, mas também respeitar meus limites, para que o afeto não se torne um peso e, sim, continue sendo um presente.

Até o vento é um desafio. No inverno, quando o ventilador do meu marido insiste em girar, meu corpo grita de desconforto. O mesmo acontece com as janelas: enquanto eu preciso de ar, ele prefere a casa fechada. Claustrofobia contra rotina fechada — mais uma batalha silenciosa no dia a dia.

E há as questões invisíveis, aquelas que não aparecem para quem olha de fora. Depois de socializar, minha mente pede um refúgio, silêncio, solidão. Mas como mandar os filhos embora do quarto quando tudo que eles querem é estar perto de mim? Como explicar que o celular, em alguns momentos, é meu descanso mental, sem parecer mau exemplo?

A maternidade é feita de fases — gravidez, puerpério, amamentação, desmame, desfralde, alfabetização, pré-adolescência… Tudo muda o tempo todo. E eu, com minha rigidez cognitiva, me sinto tentando dançar em um chão que nunca para de se mover. Ensinar flexibilidade aos filhos, quando minha própria mente resiste a mudanças, é talvez uma das maiores ironias que vivo.

Mas ainda assim, entre todas as dificuldades, há algo que permanece firme: a maternidade é meu remédio. É onde encontro sentido, é onde o amor supera os barulhos, os cheiros, os ventos, as rotinas quebradas. É onde a vida me prova, todos os dias, que mesmo sendo autista, mesmo com todas as minhas limitações, eu posso ser inteira. Porque ser mãe me cura ao mesmo tempo em que me desafia.

E no fim das contas, cada abraço apertado, cada risada alta, cada fase nova que me obriga a reaprender é também a lembrança de que a vida vale a pena — e que meus filhos são o milagre diário que corre nas minhas veias.

13 agosto 2025

Autismo (viver sem saber)

Por muito tempo, achei que eu era apenas “tímida demais”, “estranha” ou “difícil de lidar”. O diagnóstico de autismo chegou tarde, e com ele veio uma avalanche de memórias, explicações e feridas abertas. Passei anos tentando me encaixar em moldes que nunca foram feitos para mim, pagando um preço que nem sabia que estava pagando.

Fazer amigos sempre foi um enigma. Eu queria me aproximar, mas não entendia as regras não ditas das conversas, os momentos certos de falar ou o que responder para “puxar assunto”. Cumprimentar alguém, conviver com vizinhos, ou até responder um simples “oi” sempre foi um desafio — não porque eu não quisesse, mas porque não sabia como.

Na escola, falar em público era aterrorizante, e trabalhar em grupo parecia uma prova de resistência emocional. No trabalho, o masking era minha armadura: eu copiava gestos, expressões e jeitos de falar para parecer “normal”. Funcionava… até que eu chegava em casa e desmoronava, precisando de dias para recuperar a energia que gastei para existir socialmente.

As crises e o burnout eram inevitáveis, principalmente quando minha rotina era alterada de repente. Mudanças que pareciam pequenas para outros eram gigantes para mim.

Minha dificuldade de comunicação e de impor limites me levou, desde muito cedo, a entrar em relacionamentos abusivos — o primeiro aos 13 anos. Isso não se restringia ao amor: amizades, família, trabalho… eu não sabia dizer “não”, nem proteger meu espaço.

Quando me tornei mãe, enfrentei outro abismo: educar, impor autoridade e manter firmeza era um campo minado. Eu tinha medo de ser dura demais ou permissiva demais, e muitas vezes me sentia perdida, culpada e esgotada.

O diagnóstico não apagou o passado, mas me deu um mapa para entender o caminho que percorri. Ele me mostrou que não sou preguiçosa, estranha ou fraca — sou uma mulher autista que passou a vida inteira tentando sobreviver sem saber quem realmente era.

Hoje, ainda tenho dificuldades. Ainda me canso. Ainda enfrento crises. Mas agora sei que há um motivo. E, mais do que isso, sei que não estou sozinha.

21 julho 2025

Autismo (O que mudou)

Receber o diagnóstico de autismo na fase adulta foi como finalmente encontrar uma legenda para um filme que eu assistia a vida toda sem entender direito. De repente, comportamentos, dificuldades e sensações que antes pareciam falhas pessoais passaram a ter um nome — e um motivo.

Uma das coisas mais difíceis de encarar foi perceber como tantas áreas da minha vida estavam atravessadas por essa diferença neurológica. A começar pelas coisas mais básicas: limpeza da casa, higiene pessoal, organização do cotidiano. Para muita gente, essas são tarefas simples, quase automáticas. Para mim, sempre foram um mistério.

Nunca fui ensinada de verdade como cuidar da minha higiene ou manter uma casa em ordem. Apenas esperavam que eu "soubesse". Mas meu cérebro não funciona assim. Sem modelos claros, instruções passo a passo ou apoio prático, essas tarefas viraram fontes constantes de frustração, culpa e, muitas vezes, vergonha.

Outra grande dificuldade é no campo das interações sociais. Normas de educação, aquelas regrinhas implícitas de convivência, sempre me pareceram enigmáticas. Às vezes falo "fora de hora", não reajo do jeito esperado, ou deixo de perceber sinais que para os outros são óbvios. Já fui considerada "fria", "estranha", "grossa", quando na verdade eu estava apenas tentando entender como agir, tentando me encaixar em códigos que nunca me foram decifrados.

O diagnóstico não resolveu tudo — mas trouxe alívio. Ele me deu um ponto de partida. Me ajudou a compreender que eu não sou preguiçosa, mal-educada ou desligada. Eu sou autista. E isso muda tudo na forma como encaro a mim mesma.

Hoje, ainda estou aprendendo. Estou me ensinando o que ninguém me ensinou. Estou criando estratégias, pedindo ajuda sem tanto medo, aceitando limites e celebrando pequenas vitórias.

Acima de tudo, estou me permitindo existir do meu jeito — com mais compaixão.